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Archive for Setembro, 2007

“Um homem, entretanto, tinha um bilhete de viagem para a própria alma,
mas desconhecia o local de embarque”

[ Gonçalo M. Tavares ]

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homenespelhopeq

Ao contrário do que planejamos
Ao contrário do que estava no roteiro
Não haverá um retorno ao lar
O herói não será erguido pela multidão extasiada
E nem será imortalizado em camisetas de adolescentes
O fim passará desapercebido
Os olhos verão apenas a poeira erguida
E quando ela baixar
Haverá apenas a estrada
Será simples assim
No final de um dia como hoje
O suposto fim
Na aparente estrada
Que vai para lugar nenhum

[ Jean Darilho ]

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“Tão curta a vida e tão comprido o tempo!…

Feliz quem não o sente.

Quem respira tão fundo

O ar do mundo,

Que vive em cada instante eternamente.”

[ Miguel Torga ]

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Faço parte de uma lista sobre literatura e um outro participante enviou este trecho de Clarice Lispector. Muitos podem ler e não perceberem nada demais: coisa simples, sem nexo, fraquinho. Ao contrário, ouso afirmar, isto é poesia pura, em amplos sentidos.

Bons ventos!

José Roldão

– Papai, inventei uma poesia.

– Como é o nome?

– Eu e o sol. – Sem esperar muito recitou: – “As galinhas que estão no quintal já comeram duas minhocas mas eu não vi”.

– Sim? Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?

Ela olhou-o um segundo. Ele não compreendera.

– O sol está em cima das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e não vi as minhocas…

[ Clarice Lispector – Perto do Coração Selvagem ]

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Books

“ A vida e os sonhos são as páginas de um livro único; a leitura seguida dessas páginas é o que se chama a vida real; mas quando o tempo habitual da leitura (o dia) passa, e chega a hora do repouso, continuamos a folhear negligentemente o livro, abrindo-o ao acaso nesse ou naquele lugar, e caindo ora em uma página já lida, ora em outra que não conhecemos; mas é sempre o mesmo livro que lemos.”

[ Schopenhauer ]

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EM CÍRCULOS

dede Sempre agia assim. Corria de um lado para o outro, como se dessa forma pudesse encontrar, aos círculos, a resposta pairando pelo cômodo e, como se a pudesse engolir e digerir, ao invés de ruminá-la; ao invés de saboreá-la e chegar ao cerne da questão. Intentava a solução de todos os problemas em vista. Tolo! Era como o chamavam, na maioria das vezes. Para suas dúvidas nunca havia encontrado soluções absolutas. Buscava-as, como quem busca uma nova forma de prazer, mas sabia de antemão que era de sua natureza não se saciar nunca. Por falta de método ou falta mesmo do que fazer, passava suas angústia à limpo, diariamente, nesse vai-e-vem tresloucado, com olhos esgazeados, olhando através do ar, como se fosse possível tragá-lo e acumulá-lo em suas entranhas. Ficava assim, sempre assim. Depois, quando o cansaço vencia, por fim, derrubava-se no chão e adormecia. Tolo! E nem dava por si nesse estado. Apenas adormecia. E esquecia-se de si mesmo todos os dias.

[ José Roldão ]

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pessoa

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!

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500458484_5a721349eb “(A noite desce, e a lua brilha lá no fundo, engrinaldada de estrelas andarengas. Silêncio! Pelos caminhos, a vida, a vida se dilui na distância. Do poço escapa a alma das profundezas. Por ele se vê como que o outro lado do poente. E parece que de seu bojo vai sair o gigante da noite, senhor de todos os enigmas do mundo. Ó labirinto fantástico e silente, umbroso e perfumado parque, salão mágico e encantado!)

– Platero, se um dia eu me jogar neste poço, não será para matar-me, podes estar certo, mas sim para apanhar mais depressa as estrelas”.

Juan Ramón Jiménez – Trecho de “O Poço”, da obra “Platero e Eu”.

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sozinho

Era uma vez um menino que se chamava Eu. Sim, é um nome absurdo, mas era esse o seu nome. Crescera no seio de uma família numerosa que se reunia aos domingos sem, no entanto, que os seus nomes fossem esquecidos durante os outros dias da semana. Existia um vínculo invisível que fazia com que estivessem presentes diariamente nas conversas do almoço, nos planos em vista, nos comentários sobre o jogo de sueca do domingo anterior, enfim, era uma verdadeira família, dessas que quase não existem mais nos dias de hoje. Naquela época o menino eu não estava ciente do mundo fora desse círculo familiar, aliás, círculo que viera de outro país, com outra cultura e valores, e que se preservava fechado no mais que pudesse.

Os anos se passaram e o menino cresceu. Não foi possível evitar que ele conhecesse outros, que se apaixonasse ou que mostrasse talentos, nem puderam evitar o pior: que ele crescesse! Só que havia crescido e não encontrava mais a sua família por perto e as outras que encontrava eram muito diferentes da que tivera. O mundo havia mudado sem que ele tivesse percebido, pois ele havia mudado também, direitinho como o mundo havia planejado de antemão. O jovem havia descoberto no mundo umas portas largas e passava uma após a outra. Nem havia prestado a atenção numa portinha pequenininha, que nem parecia porta – jurava que fosse janela! – e que ficava onde suas lágrimas mais tarde começariam, por fim, a cair. Quando o jovem descobriu seu pequeno coração e o viu todo molhado por causa das chuvas choradas de todos os seus dias, decidiu então deixar o tempo que ficou pra trás de verdade, bem para trás; muito mais distante ainda do que possam imaginar, mas tão distante, tão mesmo, que quase não mais se via de tão pontinho que tinha ficado lá na linha fininha do horizonte da sua vida, até então.

Quando descobriu essa portinha pequenininha, o jovem que se chamava Eu saiu por ela e sentou numa calçada de cimento que parecia enorme, bem grandona mesmo, porque ele havia se transformado em um menininho de novo. Pegou um pedacinho de tijolo e começou a desenhar um sol gigante, daqueles com raios todos tortos, um menor que o outro, mas bem bonito – lindo mesmo, só vendo!

Depois, fez uma casa toda quadrada, com duas janelas e uma porta, todas abertas – nem tinha trincos ou fechaduras, porque ele não tinha desenhado nenhum ladrão – e do lado da casinha, que parecia mesmo de tijolos por causa da cor das linhas, fez um menininho de cabeça redonda, com os braços pro alto, com sorriso de meia lua, dois pontinhos de olhos, um risquinho de nariz e mais uns rabiscos de cabelo. Desenhou uma árvore e descobriu que a diferença entre nuvens e copas de árvores é só uma questão de cores, porque desenhava igualzinho, tipo um pompom de algodão.

Quando terminou seu desenho veio uma chuva bonita de verão e cheirosa de terra. Depois, rapidinho, abriu um sol lá longe que nem se pode imaginar! Nem adianta! Era lindo mesmo – muito mais bonito que esse daí que você pensou! – e teve até um arco-íris que parecia uma ponte entre as duas serras. Foi então que o menino percebeu que não havia sido mais aquela sua chuva chorada que tinha caído em seu coraçãozinho, mas uma chuva lá de cima, uma chuva gostosa! Então o menininho abriu os braços e deu um sorriso feliz pro sol que havia voltado!

E quem pôde ver de longe aquilo tudo acontecendo – até lá de muito longe, lá daquele pontinho na linha fininha do horizonte – parecia mesmo que o que se via fosse igualzinho ao desenho que o menino havia feito na calçada. Parecia mesmo! Só vendo…

[ José Roldão ]

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AURORA

aurora

Que a tristeza seja um breve instante nesta existência

Pois que nem o sol nem a lua estão imóveis no céu

Só assim passam-se as horas

E podemos ver a linha do horizonte

Percebemos o abrir e fechar do véu

Para só então vislumbrarmos a serenidade e persistência

Do amanhecer que levanta a aurora

Em mais um dia que desponta como quem se esqueceu.

[ José Roldão ]

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FragmentosI_online

Eu fiz canções na madrugada
sentado na cama de lençóis amarelos
o incenso exalava miniaturas de eucaliptos
no quarto, esta caixa que me cerca

Escrevi uns versos e os vesti de música
dei voz ao que me esvaziava
saquei das cordas, invoquei o som e vi
que dançavam sombras no candelabro

Tudo ressoava no guarda roupas
senti a janela vibrar quase em fuga
o espelho fechara os olhos de prazer e não refletia,
a cômoda se ressentia ao meu lado
o lustre bailava como há muitos ventos não se via
eu trincava as unhas no tampo batido do violão alado
e a porta rangia louca cantarolando a melodia

Quando me faltou o ar, parei de repente.

Mais nada…

Depois que o som alcança alturas
ele cai morto e deixa o cadáver do silêncio.

[ José Roldão ]

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O escritor torna dizível o que não se sabia dizer

Olavo de Carvalho

Dos homens de letras que escrevem para jornais, somente uns poucos – eminentemente um Carlos Heitor Cony, um João Ubaldo – conservam ainda as características de escritores e não se rebaixam à condição de publicitários e cabos eleitorais. Tão raro e contrastante é o autêntico escritor em comparação com estes últimos, que o próprio termo escritor, usado abusivamente para designá-los, acaba por se reduzir a uma figura de linguagem, aplicável a qualquer atividade que não tenha com a arte de escrever senão a comunidade de instrumento, a linguagem, mesmo quando a empregue com a menos literária das finalidades, que é a de lisonjear os baixos sentimentos políticos da massa mediante a repetição de slogans, cacoetes e frases feitas.

O que define o escritor é justamente a capacidade – ou pelo menos o esforço – de transpor em palavras a experiência autêntica do “verbo interior”, aquela fala muda que, segundo Santo Tomás, vem do coração, compreendido em sua acepção simbólica de núcleo da consciência, de centro vivo da individualidade moral.

Na maior parte das pessoas, a expressão em palavras vem de um estrato mais superficial, verbalizando apenas aquilo que já veio meio pronto das recordações de conversas ouvidas ontem ou do noticiário matutino. O conversador ordinário troca palavras por palavras. O escritor transforma em palavra aquilo que ainda não é palavra e que já não é mais pura sensação corpórea: a forma inteligível apreendida in statu nascendi, na fonte mesma do conhecimento intuitivo.

A tão louvada ou execrada – mas raramente compreendida – individualidade do estilo provém exatamente disto: do caráter originário e autêntico do verbo interior transmutado em exterior. Nesse sentido, um escritor nada “cria”, mas “encontra”: encontra dentro de si, em estado fugaz e nebuloso, uma idéia latente, que a conversão em palavra torna patente – até para ele mesmo. Se algo o escritor inventa, é no sentido latino de invenire: descobrir. Daí que, nele, a verbalização tenha aquele poder curativo e revigorante que o homem comum só vem a conhecer em raros momentos de descarga confessional. A verdadeira escrita literária é uma tomada de consciência, uma conquista de si – e é individual precisamente por isso e por nada mais.

Por não compreenderem isso (e como o compreenderiam, não sendo eles próprios escritores e sim conversadores vulgares, embora de uma vulgaridade acadêmica?), muitos teóricos aplicam de maneira estereotipada, rígida e inadequada a distinção, em si perfeitamente válida, da fala comum e da fala literária: e acabam negando que ela exista, por não encontrarem provas dela no recenseamento quantitativo dos giros de estilo, quando na verdade ela não pode ser encontrada na linguagem já exteriorizada e pronta, mas apenas no ato em que esta brota do verbum mentis, ou verbum cordis, ato que precisamente os procedimentos estatísticos são os menos capacitados a apreender.

O escritor, portanto, se escreve de maneira individualizada, não é porque assim o exija a convenção do seu ofício, mas porque, se escrever de outra maneira, não estará falando desde dentro, desde a fonte das intuições, mas desde o registro consolidado das idéias comuns, já ditas e reditas e necessitadas apenas de aprendizado, não de descoberta.

Com isso, voltamos ao velho Quintiliano, segundo o qual, se você sabe o que quer dizer, sabe como dizê-lo. O problema está justamente nesse “quer”. O que o escritor tenta fazer é dar voz a um querer-dizer que ainda não é um dizer e que só por meio dele se transformará em dizer; ao passo que a conversação corrente se constitui no comércio de bens já incorporados a esse patrimônio.

Sim, a função essencial do escritor é tornar dizível o que ninguém, nem ele próprio, sabia dizer. O problema todo está nesse “o quê”: se ele nada ouve dentro de si, se seu coração está mudo, ele nada dirá, ou dirá apenas aquilo que pode ser dito pelo conversador banal.

A verdadeira dificuldade do ofício literário, não obstante todos os formalismos e estruturalismos e desconstrucionismos, está pois no bom e velho problema do “conteúdo”. Só “tem o que dizer” aquele que ouviu o verbum cordis e não o deixou tombar no esquecimento; ao passo que a conversação corrente – a linguagem da mídia e da política, por exemplo – tem de ignorar necessariamente esse momento interior, para assegurar a rápida associação de palavras e valores, palavras e reações, palavras e sentimentos.

Mas o verbum cordis é ao mesmo tempo pré-verbal e supra-verbal. Ele ainda não é expressão socialmente cristalizada, mas já é presença de uma inteligência superior, superior mesmo aos talentos discursivos do escritor, que não são senão servos dessa voz interna e instrumentos de sua exteriorização social. Verbalmente tosca e informe, a voz interior é eideticamente límpida e intelectualmente suprema: é nela que se dá o ato propriamente dito do conhecer. O resto é esforço físico, associação de idéias ou consulta ao dicionário.

O critério de distinção do literário e do não-literário não é portanto externo, quantitativo, redutível a estatísticas de giros de linguagem. É interior e baseado no autoconhecimento. Só o leitor que no ato de ler consiga efetivar esse autoconhecimento pode distinguir o literário do não-literário. Não é impossível tornar essa distinção um critério cientificamente válido, mas só pela mediação de uma fenomenologia do verbum cordis. Eis porque é mais fácil reconhecê-la na prática do que formalizá-la em conceitos científicos.

Mas, para quem é capaz de realizá-la, ela não somente é clara e distinta, mas também se incorpora de tal modo ao aparato perceptivo individual que se torna como que um novo sentido corporal: o “gosto literário” – algo tão inapreensível desde fora quanto fácil de reconhecer desde dentro.

Tudo isso concorre para que a literatura, escrita ou lida, se transforme num teste, talvez o mais rigoroso, para diferenciar a sinceridade do fingimento. Como bem viu Fernando Pessoa, ninguém é tão pouco fingido como esse fingidor de segundo grau que é o poeta: para fingir literariamente, é preciso estar “perto do coração selvagem”, é preciso não mentir para si, é preciso dar voz ao verbum cordis.

Isso é absolutamente impossível quando se quer obter do leitor uma reação prática imediata, como se dá no caso da propaganda política. A retórica política dirige-se ao “cidadão”, um papel social, não à individualidade concreta. Ela exige a repressão dos sentimentos contraditórios, o massacre da complexidade interior, a compreensão de tudo na fórmula schmittiana do amigo e do inimigo, que se traduz no voto, no aplauso, na vaia, no protesto público. Ela exige que, para ser politicamente coerente, o homem, às vezes, suprima metade do que percebe.

Daí que a retórica política, por mais bela, nunca seja literatura autêntica. Ela tem fundo falso necessariamente. O escrito político só se torna literatura quando se ergue à complexidade da prova dialética, quando já é, um pouco, filosofia. Mas mesmo aí há limites. Algo de incontornavelmente desagradável aparece mesmo nos mais límpidos momentos da prosa de Cícero: sempre suspeitamos que ele não crê totalmente no que diz. Isso acontece porque ele não quer apenas nos persuadir de uma idéia, mas nos induzir a uma atitude política concreta. Quando voltada à política prática, a retórica nunca deixa de ser uma arte de suscitar reações epidérmicas.

Eis a razão pela qual a literatura nunca se deu bem com o compromisso político ou com a simples paixão eleitoral do momento. A politização de todas as esferas da conversação nacional eliminou quase que por completo a possibilidade da expressão literária nos grandes jornais e revistas.

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Dizem que no universo existem fluxos de tristeza e quando não temos mais as defesas comuns a todo indivíduo (o que é desejável, em certo sentido), esse fluxo chega e nos trespassa de vez em quando. Algo inevitável – é o que dizem. É uma tristeza que não tem nada de pessoal. O que se pode fazer é deixar que esse feixe de tristeza passe, que ele siga seu caminho. Dizem que não devemos detê-lo, pois bem pode acontecer que ele se agarre em nós, mesmo que não nos pertença.

Mas pode acontecer da tristeza vir até nós por outros meios. É quando ficamos tristes por causa de alguém. Dizem que desse modo é mais doloroso, pois é algo pessoal, algo que se liga a nós através de atos de outras pessoas ou na falta destes, quando os esperamos. O que se ouve dizer é que existem certos limites, certo cansaço que nos envolve e pode sufocar. Dizem que devemos comunicar os motivos a quem de direito e tentar resolver por meio de cuidados adicionais ou atenção direcionada.

Ora, e quando esse artifício não funciona?

Eis, meus amigos, uma questão delicada… Não há muito que fazer, além disso. Resta-nos a opção da espera, da paciência, da auto-negação, do desapego. O grande perigo é que, dessa maneira, a responsabilidade fica sobre um só dos pólos do problema: ou você aceita as coisas como estão ou não aceita. A ponte que liga as duas margens fica frágil, com rachaduras; fendas que podem deixar escoar sentimentos e deixar vazar o tempo.

Quem pode se sustentar em cima de uma ponte assim por muito tempo, sem correr o risco que ela desabe e carregue tudo para o fundo do abismo?

É então que retornamos para a margem de onde viemos no início e tentamos vedar esses vazamentos. Mas não conseguimos realizar essa tarefa, sozinhos; é preciso a ajuda da outra margem. Você grita pedindo ajuda, mas pode acontecer da outra margem estar longe demais. Pode acontecer também de te ouvirem, mas pode ser também que não sejam tomadas decisões ou iniciativas para consertar a ponte.

Então você vai ficando rouco e perdendo a voz com o passar do tempo. Decide-se calar, pois só há o próprio eco que volta feio e repetitivo. E assim entra em cena a solidão. Mas essa é uma solidão triste, não aquela que nos faz bem e traz paz quando precisamos. É aquela não solicitada, é uma solidão imposta.

Eis, meus amigos, uma questão ainda mais delicada…

[ José Roldão ]

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Um minuto, creio que seja o bastante

Nada pode ser tão permanente que dure

Intacto, por mais de um minuto, silente

Penso dos objetos, corpos, adjetivos, estruturas

Idéias permanecem, creio que sigam adiante

Além mesmo daquele que às teve em mente

De fato, por mais insalubre idéia, porém inebriante

Como agir prematuramente, sem sombras, dedos

Em riste, como se fossem flechas

Que não quisessem chegar ao alvo

Mas preferissem a dor da espera,

A ânsia do impacto a qualquer momento

Agora, invento o som perfeito

Da flecha que deveria chegar

Rápido, plenos pulmões atacando o ar

Um grito, rouco, acumulado, turvando a vista

Era pra deixar a alma vazia, mas não:

Foi em cheio…

[ José Roldão ]

02/09/2007 00:56h

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Francis ouvia Chopin. É fácil imaginar a cena: um homem de feições sérias, sentado em uma poltrona escura, numa biblioteca escura, com livros de capas escuras. Quase podemos visualizar certa névoa no ambiente. Torna-se fácil imaginá-lo, pois Francis fuma charutos e neste momento mesmo está a fumar. A poltrona está virada para a janela de vidros impecavelmente limpos. Seis espaços quadrados, seis pedaços de vidro enquadrados em madeira, a madeira também escura. As cortinas abertas em renda, como se fossem uma mulher de vestido longo, rendado, fazendo o gesto de quem aceita um convite para dançar. A mulher não existe, tampouco sabemos se Francis a está a imaginar. Imaginávamos nós, apressados em desenvolver a história.

Estamos a observá-lo pelas costas, pois não desejamos perturbá-lo, certamente. Porque ousaríamos? A cena é perfeitamente uma cena de sonho, porém um sonho sonhado em outro século, um sonho tal que, magicamente, sobreviveu pairando, ultrapassando os mesmos séculos que pensávamos. Talvez porque quem o sonhava já está morto; talvez porque os sonhos são assim mesmo: dispensam, em sua autoridade de sonhos, o tempo, mesmo porque os dois não podem existir ao mesmo tempo. Ora essa, ao mesmo tempo! Quantas asneiras nós acabamos por pensar tentando esclarecer o que não se pode! Enfim, os dois se odeiam. Não a mulher que aceitava a dança, tampouco o nosso Francis sentado na poltrona, pois ambos estão ainda parados: a mulher em nossa ansiedade, Francis a ouvir Chopin. Era nos sonhos e no tempo que estávamos a nos perder.

Pode-se pensar no motivo de ficar a olhar este homem sem querer ser notados. Igualmente, podemos buscar motivos para estar a descrever estas coisas. Certamente existem motivos. Francis não ficaria dia após dia sentado naquela poltrona ouvindo Chopin caso não houvesse algo em especial, algo em que pensar ou, até mesmo, em evitar de pensar. No caso desta narrativa é a segunda hipótese.

Quando criança Francis não tinha amigos. Fora criado pela avó, pois havia perdido os pais quando muito pequeno, tão pequeno que nem o lembrava, era mesmo como se nunca houvessem existido. A avó chamava-se Elizabeth, como outras tantas avós chamavam-se por costume. Não escrevi que era um costume desta ou daquela época, pois ainda não definimos se a cena era de sonho ou de fato no tempo. Pouco nos importa. Para Francis, mais vale o sonho do que o tempo. E é dele que estamos a falar.

Sua infância passou em extrema paz. Elizabeth não era dada às conversas com crianças e ele não compreendia os velhos. Pareciam-lhe fantasmas que vagavam ainda pelo mundo, mas com rosto enrugado e carrancudo de tanto esperar a morte que nunca mais chegava. Francis pensava na possibilidade de estar brevemente só, caso a expressão feia da vida na face da avó acabasse por trazer a foice da morte, que lavra todos os rostos, serenando as expressões até que se fecha o caixão. Depois ele não sabia ao certo o que acontecia. Chegou mesmo certa vez a imaginar que, depois de fechado o caixão e enterrado, o corpo emagrecia tanto que viria a tornar-se apenas ossos. Já vira alguns ossos e apesar de nunca ter conseguido recriar um corpo inteiro em sua imaginação ao observá-los, pois vira fragmentos de esqueletos aqui e acolá, dos mais diversos animais, conseguia aceitar facilmente a possibilidade como tal. Esta é sua primeira lembrança de quando era pequeno.

[ José Roldão ] (31/08/2007 02:53h) … por acabar.

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