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Archive for the ‘Relatos’ Category

Abro um saco repleto de fotografias como quem dá o primeiro passo para dentro de um túnel do tempo. Paredes apertadas, escuras (não vejo a luz, enganaram-me os relatos de quase-morte) e eu não sinto cheiro algum.

Seguro a primeira foto e percebo que o meu passado não me pesa nada: lembranças leves de fim de tarde numa casa colorida pelo sol quase a se pôr, móveis cor de cerejeira, tapetes com desenhos sem lógica em tons de vinho, branco e amarelo escuro, umas sandálias apertadas e meias brancas até os joelhos. Olho-me de cima a baixo e revejo o desenho da roupa bege com detalhes em castanho (lembra-me sempre o uniforme de um piloto de avião, excepto pela cor) e reparo na minha expressão desgastada por ter de fazer pose para sair bem no retrato: cabelo húmido para o lado, bochechas cheias de raiva e os olhos apertados de inquietação e ansiedade, os braços pendentes ao lado do corpo (meus brinquedos a espera e eu ali a ser posterizado numa impaciência suprema sem sentido algum), tudo a reflectir com perfeição os anos oitenta: uma espécie de fidelidade estética generalizada que nunca mais ocorreu nas décadas posteriores.

Uma vida assim resumida e um futuro a ser destilado no conta-gotas dos anos (as fotografias uns pedaços de silêncio que não me pesam quase nada, eu já disse?). Expressões faciais, objectos, luzes, imagens de um mutismo absoluto a sustentarem uma autoridade mnemónica incontestável (os retratos nos fazem calar como as pessoas que só de por os olhos em nós silenciam-nos, já repararam?)…

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sonhos_thumb[3] Disse a minha mãe, agora ao almoço

— Lembro-me perfeitamente do gosto de um queijo que eu comi há quarenta anos na Igreja

então passei a lembrar dos gostos e cheiros que também guardo perfeitamente, dos quais basta uma palavra para que retornem ao nariz e à boca, ela continua

— Era um queijo que vinha em uma lata. Na época parecia-me que a lata levava cinco quilos de queijo, hoje não sei, devia ser um quilo, mas eu era pequena, hoje não sei…

Fiquei a pensar nessa questão da quantidade e do peso das coisas versus nosso tamanho e força que aumentam com o tempo, coisas que eu…

 

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Sozinho, durante a madrugada, olhando as casas e as ruas da minha janela, eu fico imaginando as pessoas dormindo. Olho para os postes, pontos de luz que deixam os caminhos em sépia (…)

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Ando cá fechado em minha torre, meio isolado do mundo em um momento de transição, daqueles em que são estendidas no varal notas de solidão querida, desejada, como se a única coisa que importasse fosse ruminar a vida em silêncio.

Há roupa para lavar, mas finjo que me esqueço; há-de haver um tempo certo para cada coisa, um momento específico, exato, então passo os dias tentando alcançá-lo, ruminando, e lembrei-me do sonho que tive faz algumas semanas, um sonho bom nas formas, nos cheiros, nas lembranças. E talvez ruminar a vida seja isto.

Voltava ao tempo de minha adolescência, mas era a consciência e a minha forma de hoje que lá estavam; ali ao lado (…)

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Chegar à aldeia (capital do mundo) e encontrar os amigos enevoados por causa do tempo e da distância, desanuviar as feições, forçar a rouquidão que é a rusga da pressa no falar e logo todas as vozes em uníssono saindo pela boca do Miguel

— Parece que foi ontem, pá

enquanto o outro que leva o mesmo nome que eu

— Pega o violão que já perdemos foi tempo

e que é fruto da mesma infância que a minha (apenas dos domingos na casa da tia Celeste, o que é quase o mesmo) a abrir os ouvidos ao passado, os acordes que ainda ecoavam pelas ruas de Trancoso

— Lembras-te?

(…)

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Acho que os cães entediam-se em certas madrugadas e põem-se a latir, resmungando para outros cães. Pode ser que exista uma linguagem (de certo que há) e percebo que eles se comunicam a outros mais distantes (ou se desentendem?) em alguma disputa indecifrável para nós, humanos.

Estão lá os cães a latir…

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chuva janela— O que importa o lugar, Dane-se! Cale-se!, pois trago todo o peso do mundo comigo, minha filha está morta, se fosse viva dois mundos apoiavam-se em meus ombros mais a minha filhinha a bater-me, a gritar-me, jogando coisas e deixando marcas de suor nas paredes, os dedos dela a perfurarem o abdômen ferido e eu a cuidar inventando mil remédios, e eu forte, e eu mais feliz, a brigar com o tempo e a esquecer da morte (…)

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Uma insignificante sombra pousou sobre a mesa cor de tabaco. Quase não pude perceber a nuance, uma gradiente, que saltava de um lado para o outro, fugindo sistematicamente da minha mão incansável. Mentira. Cansava-se ao mesmo tempo em que meu braço: descansavam juntos, em uma trégua amigável e sem receios de que qualquer um dos lados quebrasse a regra improvisada. Ficaram assim até que o dia amanheceu e a sombra partisse imperceptivelmente, deixando minha mão solitariamente iluminada.

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todasasnoites1Todos estavam reunidos no quarto-sala: aniversário. Como em toda reunião em que já não se tem muito o que dizer, logo iniciam-se as recordações de aventuras do tempo de criança. O mais curioso é que são contadas as mesmas histórias, sempre. Escangalhavam-se de rir…

Eu, sentado ao chão, prestando certa atenção dividida para ver se algum pormenor seria acrescentado nas repetições, comecei a ouvir outros relatos e considerações vindos do grupo vizinho de conversas: as mulheres. Uso aqui o termo mulheres, mas tanto estas quantos os homens eram todos muito novos, nos inícios dos vinte anos. Elas falavam de bolsas, novidades, espantos, e vez ou outra interferiam nas lembranças dos rapazes; riam-se, e depois fechavam-se em seu grupo novamente. Havia no ar a mistura das vozes altas dos dois grupos, causando-me certo entorpecimento.

Foi uma noite repetida. A mesma de outras reuniões com esse mesmo grupo. Deu-ma cá uma sensação de estar suspenso no tempo: era como voltar o vídeo alternando apenas o ambiente, mas mantendo as falas e os personagens.

Não ter memória é o máximo da solidão. Possuir memórias não compartilhadas, diferentes do grupo do qual se está participando, é como estar numa ilha cercado de impressões alheias por todos os lados. Fica-se a olhar o mar, pronto para acenar ao primeiro navio que o atrevesse.

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E o silêncio rompeu-se: foi levada para a UTI. Não se sabe se de lá retorna (e por isso julgo aquelas cenas de morte previamente anunciada, sentida), mas bem pode ser, quem sabe? Minha mãe, ao telefone internacional, disse-me: «Eu estava já tão triste! Na UTI, mesmo que mal, ainda há esperança…». A vizinha contou-me: «Não morreu ainda, mas antes de ser internada já estava por demais agressiva…».

A mulher sofre de Mal de Alzheimer, uma doença degenerativa do cérebro, e que causa perda da memória episódica. É certo, já não se recordava de quase ninguém e, julgo eu, possa se dever a isto que se tenha tornado agressiva. Será que sem memória conseguiríamos ser bons para com os outros? Que outros? Não ter memória é o máximo da solidão…

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Esta semana olhei pela janela de manhã e vi que uma ambulância estava parada à porta da casa do outro lado da rua. Eu sabia de antemão que a mulher estava doente e já não reconhecia aos amigos. Não houve suspense, apenas a constatação serena dos fatos.

Um assistente pegou uma maca e a levou embaixo do braço; entrou na casa. Até esse instante não havia aparecido ninguém lá de dentro, apesar da porta já estar aberta. Coloquei-me logo atrás dos vidros fumês da janela e a meias cortinas, aguardando. Alguns momentos e vejo o corpo da mulher que vem amarrado na maca. Corpo amarelo, mole, com todas as características aguardadas. Que a morte é a ausência da vida, todos sabem; mas só percebemos o alcance desta afirmativa quando nos deparamos com um morto de fato. Parece-me impossível não distinguir um ser vivo de outro já sem vida. Redundantemente: falta-lhe algo.

Pois a mulher foi colocada ambulância à dentro como se fosse uma coisa já sem sentido. A partir de então, reparei que a filha dirigia-se à cabine do motorista, chorando; e por fim tomava assento. O marido, que tantos cuidados e dedicação havia dispensado à esposa doente por tanto tempo, chorava junto à porta com um lenço branco que às vezes ia à boca e noutras aos olhos.

A ambulância começou a sair e o homem, tantos anos casado com a morta, ficou olhando o carro distanciar-se lentamente. Depois entrou muito devagar e de cabeça baixa, fechando o portão atrás de si. Vi, momentos antes em seus olhos, a certeza de que estava sozinho; que, enquanto a ambulância saía devagar e virava a esquina, ele já sabia que não veria mais a mulher e que nunca mais ela entraria naquela casa; na qual ele, a partir de agora, ficava só. Vi tudo isto como se fosse um filme triste; todas as cenas ensaiadas à perfeição, aquela perfeição que só é alcançada quando se contracena com o surgimento da vida ou com a morte.

Abri novamente as janelas, as cortinas e uma fresta na lembrança, por onde entram vez ou outra estas cenas. O resto foi silêncio.

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Este vento frio e úmido traz-me saudades das pedras geladas e cobertas de musgos das aldeias de Portugal. Quando eu passava as mãos sobre o verde incrustado por entre as pedras, sentia como se me aplainasse a pele, como se o tempo roçasse devagar brincando com meus poros, estes que me arrepiam agora, neste exato instante, numa prece de retorno.

Lembro-me bem da neblina descolorindo as casas, e gostava de atravessá-la como quem dispensa as pontes, pois aprendeu a voar, assim, de repente, como em uma dança de sonho.

Caíram agora à minha frente, por um fio desenrolado da memória, algumas folhas de eucalipto que lembro ter posto sob o travesseiro para que me purificassem a noite do extremo silêncio da ausência urbana; porém, noite esta, que trazia as conversas de animais obscuros, cortadas ao meio pelo som de uma moto a riscar com as unhas a auto-estrada, desfazendo todo o encanto, para que o silêncio mais uma vez arrebentasse em seguida, numa espécie de ciclo inevitável.

É deste silêncio que escrevo. Um silêncio de saudade relutante, inesquecível.

[ José Roldão ]

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II – O MANÍACO

«Pessoas completamente mundanas nun­ca entendem sequer o mundo; elas confiam plenamente numas poucas máximas cínicas não verdadeiras. Lembro-me de que, certa vez, fiz um passeio com um editor de su­cesso, e ele fez uma observação que eu ouvira muitas vezes antes; é, na verdade, quase um lema do mundo moderno. Todavia, eu ouvi essa máxima cínica mais uma vez e não me contive: de repente vi que ela não dizia nada. Referindo-se a alguém, disse o editor: “Aquele homem vai progredir; ele acredita em si mesmo”.

Lembro-me de que, quando levantei a cabeça para es­cutar, meus olhos se fixaram num ônibus no qual estava escrito “Hanwell”.  Disse-lhe eu então: “Quer saber onde ficam os homens que acreditam em si mesmos? Eu sei. Sei de homens que acreditam em si mesmos com uma confian­ça mais colossal do que a de Napoleão ou César. Sei onde arde a estrela fixa da certeza e do sucesso. Posso conduzi-lo aos tronos dos super-homens. Os homens que realmente acreditam em si mesmos estão todos em asilos de lunáticos”. Ele disse calmamente que, no fim das contas, havia um bom número de homens que acreditavam em si mesmos e que não eram lunáticos internados em asilos. “Sim, certa­mente”, retruquei, “e você mais do que ninguém deve co­nhecê-los. Aquele poeta bêbado de quem você não quis aceitar uma lamentável tragédia, ele acreditava em si mes­mo. Aquele velho ministro com um poema épico de quem você se escondia num quarto dos fundos, ele acreditava em si mesmo. Se você consultasse sua experiência profissio­nal em vez de sua horrível filosofia individualista, saberia que acreditar em si mesmo é uma das marcas mais comuns de um patife. Atores que não sabem representar acredi­tam em si mesmos; e os devedores que não vão pagar. Seria muito mais verdadeiro dizer que um homem certamente fracassará por acreditar em si mesmo. Total autoconfian­ça não é simplesmente um pecado; total autoconfiança é uma fraqueza. Acreditar absolutamente em si mesmo é uma crença tão histérica e supersticiosa como acreditar em Joanna Southcote:  quem o faz traz o nome “Hanwell” escrito no rosto com a mesma clareza com que ele está es­crito naquele ônibus.”

A tudo isso meu amigo editor deu esta profunda e eficaz resposta: “Bem, se um homem não acredita em si mesmo, em que vai acreditar?” Depois de uma longa pausa eu respondi: “Vou para casa escrever um livro em resposta a essa pergunta”. Este é o livro que escrevi para responder-lhe»

1) Nome de um asilo para loucos, como será verificado mais à frente.
2) Ela (1750-1814) se dizia virgem e grávida do novo Messias, e che­gou a ter muitos seguidores.

[ Excerto do livro «ORTODOXIA», de G. K. Chesterton ]

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Uma conhecida sensação tediosa invadiu este cômodo. De repente, eis que falta eletricidade. Olho da janela, que recosta do meu lado esquerdo, e vejo tudo escuro até onde a vista alcança. Em menos de um minuto, retorna a eletricidade (onde andavas? onde fostes?). Sim, retorna aqui em casa, pois, lá fora (a janela informa-me, cutuca-me), tudo permanece negro: uma noite clássica.

Aos poucos as outras janelas voltam a acender, piscam-nos luzes ali e acolá (enamoram-se da minha, flertam, enquanto torno-me um intruso na cena, um indelicado que as observa). De outros pontos, espreguiçam-se postes de luz; outros continuam adormecidos, como se, cansados, proveitassem da situação.

Apenas os carros da rodovia nunca param.

Faróis, olhos que rasgam a noite, como se fossem fantasmas amedrontando a todos nós, riscando o negro clássico que se abateu por segundos até onde a vista alcança.

Na cidade os carros nunca param. São acréscimos modernistas.

[ José Roldão ]

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«Na aridez abrasada de sol do grande lago poeirento que, por mais leve que se pise, cobre a gente, até os olhos, de branca poeira peneirada, o menino e a fonte formam um grupo risonho e esplêndido, cada qual com a sua alma. Embora ali não haja uma única árvore, o coração, em chegando, se enche de uma palavra que os olhos fixam, gravada no céu azul da Prússia, com grandes letras de luz: OÁSIS.

A manhã já tem um calor de sesta e a cigarra chia nas oliveiras, para as bandas do cercado de San Francisco. O sol bate em cheio na cabeça do menino. Ele, porém, distraído com a água, não sente. Estendido no chão, está com a mão sob o jorro vivo, e a água lhe põe na palma um borbotante tesouro de frescura e de graça que seus negros olhos comtemplam em êxtase. Fala sozinho, respira fundo, coça-se aqui e ali, com a outra mão. O tesouro, sempre igual e diferente sempre, desfaz-se às vezes. O menino, então, se retrai, apruma-se, concentra-se para que nem essa pulsação do sangue que, como um espelho que se movesse sozinho, muda a sensível imagem do calendoscópio, roube à água a primitiva forma surpreendida.

Platero, não sei se entenderás ou não o que te digo: mas esse menino tem a minha alma em sua mão».

[ Juan Ramón Jiménez – Platero e Eu, Cap. XLII – O Menino e a Fonte ]

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Estava agora, neste instante (e não escrevo no passado, mas sim neste eterno presente), observando os livros em minha frente. Vertiginosamente atacaram-me pensamentos não tão absurdos quanto os que me acometem em sonhos – e o leitor deve acreditar que meus sonhos são mundos completos, inclusivos, e podem tanto alegrar quanto me agarrar em seus labirintos.

Perdi-me nas possibilidades infinitas dentro de cada um dos volumes e meticulosamente sondei-os através de meus pensamentos, que atravessaram capas e autores. Vi o universo. Margeei estrelas e senti o fluxo incessante que corre nas entrelinhas. Desmanchei-me em pontos luminosos de conhecimento – aqueles que encontramos nas asas das mariposas – e fui atingido em cheio pela percepção completa e indizível desse instante.

Não me recordo como retornei a este mundo. Posso mesmo ainda estar sonhando, talvez. Mas não importa, pois, desde que me deixei levar naquelas asas, certamente nunca serei o mesmo. E se não fui, posto que agora eu sou novamente, nada há para recordar. Deve existir apenas o viver, de agora em diante.

[ José Roldão ]

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HOJE, lembrei-me de uma coisa ridícula: vergonha de pão com manteiga, embrulhado em papel de padaria.

Estudei por dez anos em uma escola classe média-alta, a mais cotada daquela época. Uma escola católica, método franciscano de ensino, com as adicionais aulas de religião, música, coral, artes e educação para o lar, isto é,  aulas de bons modos, etiqueta. Escola cujas mensalidades eram de alto-custo.

Eu tinha vergonha de levar merenda de casa. Minha mãe costumava preparar um pão com manteiga e o embrulhava no próprio papel que vinha da padaria. O embrulho sempre ficava um pouco engordurado.

A imensa maioria dos alunos levava dinheiro para comprar o «Pão Alemão», que era feito na própria cantina da escola.

Creio que o nome do pãozinho tem a ver com as freiras que dirigiam o colégio, pois eram todas de origem alemã. As irmãs apenas comandavam a escola, pois todos os professores eram contratados, eram professores que tinham, em sua maioria, estudado na própria escola quando crianças. Muitos desses professores eram até mesmo filhos de ex-alunos do local, ou seja, existia uma espécie de tradição ou sentido de família bem evidente.

Quando chegava a hora do recreio, eu procurava descer sempre afastado dos colegas de sala. Ia eu com meu embrulho do pão com manteiga (engordurado), escondido ou apertado em uma das mãos. Procurava um canto mais afastado do pátio imenso e com diversos «ambientes» e comia quase reprimido em um canto qualquer. Cheguei mesmo,  algumas vezes, a passar o recreio inteiro sem comer o pão, por não ter encontrado oportunidade para me ocultar ou me perder na multidão dos alunos. Em outras, retornava com o pão escondido para a sala e, discretamente, o colocava de volta na pasta. Era uma coisa que me perturbava imensamente e, certos dias, chegava mesmo a ser doloroso.

Revivendo essas cenas e os meus sentimentos durante esses acontecimentos, que vieram à superfície espontaneamente, senti asco, desprezo, repulsa por, sem motivos, ter sido tão vaidoso ou soberbo em um assunto de tão pequena monta, tão insignificante diante de todos os privilégios que tive e dos valores sob os quais eu fui criado.

Essas coisas ficaram escondidas em mim por todos esses anos, nunca me havia lembrado disso. Resolvi confessá-los para purgar um pouco essa vergonha mesquinha e inusitada.

Posso finalizar com o seguinte: como eu era ridículo!

[ José Roldão ]

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Fui dar aulas. No caminho de ida, perto de casa ainda, olhei para a rua e vi dois gatinhos comendo os restos de algum animal que havia sido atropelado. Naquela rua passam muitos veículos, pois é passagem dos carros que saem da Rod. Presid. Dutra e vão pegar o viaduto, afim de fazer o retorno. Estranhei que os gatinhos estivessem em meio a rua, tranquilamente comendo aqueles restos, e ainda estivessem vivos. Parei e fiquei observando. Em minutos vem um carro e desvia por pouco. Os gatos nem esboçaram qualquer movimento, ficaram ali, como se nada existisse à volta.

Mais um pouco e vem um caminhão. O motorista tenta passar sobre os gatos, mas de uma maneira que não os atropelasse, passando com o meio do caminhão. Quando já havia passado a metade do veículo, eis que os gatos se assustam e voltam pra calçada. Um deles consegue chegar ileso, o outro, porém, atravessa e é atropleado. Duas rodas duplas do caminhão passam por cima dele: nem um ruído, nem um miado. Apenas isso e fica o gato estendido, destroçado em parte.

Atravessei e fui ver de perto. Estava vivo segundos antes, agora era como os restos que há pouco comia. Segui adiante. Procurei o gato sobrevivente, mas nem sinal. Andei mais um pouco e tornei a olhar para trás: lá estava o sobrevivente indo para o mesmo lugar onde o outro jazia atropelado. Burro! Era como se nada houvesse acontecido, muito menos parecia fazer alguma diferença o outro ali estendido e vazado junto aos restos de antes. Eu havia visto algumas vísceras do atropelado espalhadas ao redor, e agora imaginava que o outro, provavelmente seu irmão, poderia estar comendo carne de sua carne. Por pouco tempo, pois, se ali estava agora, daqui há pouco teria a mesma sorte do outro gatinho.

Hoje, depois de dois dias, passei novamente pelo mesmo local. Não havia nada além de uma mancha no asfalto. Fico pensando que um dos gatos, porque eu o havia visto morrer, estava de fato morto; o outro, aquele sobrevivente que insistia em abusar da pouca sorte, esse eu não vi morrer, apesar de ser bem provável que tenha ocorrido, contudo, nunca saberei se de fato acabou tendo o mesmo fim. Pode parecer coisa boba, mas, sinceramente, gostaria muito de saber do destino daquele gato que, por não o ter visto salvar-se ou não, permanece em minha memória, suspenso.

[ José Roldão ]

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Um carro atravessa a rodovia e

dispara feito flexa no alvo da noite…

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Muita fumaça entre o por do sol e eu

Ele quase que já se foi

Eu forço a vista como quem range os olhos

Muita fumaça entre o por do sol e eu

As luzes de um avião me encaram

Está escuro aqui

É difícil de me ver escondido dentro de uma janela

Ao horizonte tudo vermelho

O sol fere e sangra a noite que insiste

Todos sabem que não há como vencer

O sol insiste todos os dias

Melhor que os homens

Nós enchemos o céu com fumaça

Depois temos de engelhar o rosto

Mas não mostramos os dentes

Temos culpa espalhada na pele

Temos um sorriso discreto

E um céu da boca carregado

O avião já se foi

Foi difícil de me ver aqui escondido

Uma janela é boa coisa de se ter

Quando se quer ficar oculto

Agora todas as luzes da cidade estão acesas

São como estrelas caídas

Mais estrelas pelas ruas do que no céu

Penduradas em postes

Dentro das casas

Um isqueiro que se acende na esquina

O cigarro numa boca que se distancia

Estrela cadente que vai

Na boca de um homem

Muita fumaça entre o mundo e eu

E a noite venceu mais uma vez

Todos sabem que não há como vencer

Mas o sol insiste todos os dias

Melhor que os homens

[ José Roldão ]

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Ouvindo Chopin. É possível imaginar uma biblioteca escura, uma única janela ao fundo, um homem sentado de frente para essa mesma janela, e nós a olharmos, observando-o ao fundo, vendo apenas suas costas. Não parece bem um homem, mas apenas a sombra de um homem que pensa e sente além, que se deixa levar pela obra do exímio pianista. Certamente o piano de Chopin preenche todo o ambiente, com suficiente e eficaz volume.

E eu fico aqui, observando essa cena, também me deixando levar, ouvindo Polonaise, de Chopin.

[ José Roldão ]

Posted in CIDADE SOLITÁRIA

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vidroa

O médico toca com os dedos a barriga da mulher grávida. Seus olhos cruzam com os da paciente por alguns instantes. Ela parece estar bem de saúde; e também o bebê. A mulher segura a mão do médico, separa-lhe os dedos e entrelaça com os seus: «Doutor, uma vida quer rebentar de dentro de mim».

[ José Roldão ]

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Deep Freeze

Dor de cabeça. Uma dor que foge, correndo em círculos dentro do claustrofóbico espaço craniano. Tenho dó dessa dor. Coitada! Presa, batendo desesperada, procurando uma saída! Decido não interferir. Isso quer dizer que sou pior que a dor de cabeça: vou deixá-la lá dentro, prisioneira, sofrendo. É bom inverter os papéis de vez em quando.

[ José Roldão ]

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Estou com mais um blog, chamado: CIDADE SOLITÁRIA, neste link:

http://jroldao.wordpress.com/

O título, como alguns devem perceber, é inspirado na obra do escritor-médico-português Fernando Namora; uma coleção de narrativas que tem o mesmo nome. Aliás, Fernando Namora é um de meus autores preferidíssimos.

Qual o motivo para criar outro blog? Não sei mesmo porque, mas o Fragmentos de Tempo sempre me aprisiona para determinados assuntos. Tipo, não consigo publicar aqui – trava-me as mãos e os olhos – determinadas coisas; quase sempre coisas que sejam mais pessoais e diretas, opiniões minhas e observações cotidianas. No novo blog pretendo justamente me expor mais – sem, no entanto, descobrir-me muito – e publicar percepções mais cruas e diretas que possam ocorrer em meu cotidiano.

Certamente – muito, muito certamente mesmo (aliás, já ocorreu no primeiro relato) – é impossível pra mim não ficcionalizar algumas coisas, mesmo as mais triviais. Não sei se isso é dom ou cadeia invisível, mas até que me dá bastante prazer realizar tais distorções ou reparos.

Convido-os todos a assinarem o Cidade Solitária, seja para receberem via email ou RSS, e os aguardo com muita alegria nas visitas constantes que possam me conceder!

Bons Ventos!

José Roldão

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Estava eu andando sob o céu noturno, vindo para esta casa, quando por entre nuvens [ou névoas, não sei ao certo; mas quem saberá?], vislumbrei uma forma luminosa, pronta para atravessar o umbral que nos separa do celeste. Não era circular [poucas são as formas circulares perfeitas e dignas deste nome] nem tampouco angulosa. Confesso: cismei de averiguar durante alguns instantes aquele objeto semi-identificado em minha memória. Não parei meus passos, mas segui adiante [meus olhos retesados; uma sobrancelha levantada] enquanto conversavam no aqui e ali do círculo de pessoas que me acompanhavam [sim… são muitos os círculos, mesmo que imperfeitos].O umbral celeste [aquelas nuvens que pairavam – ou será que era névoa?] estava desdenhando de minha imaginação, impedindo que a história continuasse, tanto sob o céu noturno quanto sobre os passos ensimesmados. Brinquei dentro do meu círculo e alarguei seu espaço, fazendo com que todos ajudassem aquela forma luminosa a atravessar tão dolorosa abertura. Parecia mesmo que se espremia intensamente [talvez por isso, por estar se espremendo, não fosse perfeitamente circular] e que a qualquer momento fosse cair sobre nós. Muitos sorrisos acudiram desmedidamente, mas não nos esquecemos de soprar com força para cima, fazendo pressão oposta, mantendo tudo em seu devido lugar: nem lá nem aqui, mas sim onde era pra estar.

Claro, como não!, era apenas a lua! Porém a fixação [mania, cisma, moda pessoal, entusiasmo, distração; quantos nomes!] faz com que os sentidos dancem de modos harmônicos [porém numa cena muda para o público], e bailamos desmedidamente até que… até que a moda passa; até que… cansamos. Cansamos! Então buscamos outras distrações [outras, mas que nunca são novas], e seguimos solitariamente bailando, perdidamente apaixonados pela visão no espelho; um corpo girando, girando, mantendo a cabeça o máximo de tempo parada em seu eixo: temos que nos assistir, admirar, extasiar, chamar a atenção [geralmente a nossa própria atenção] até que… enjoamos. Enjoamos, mas não dizemos assim [muito menos pensamos assim… fingimos!]. Então olhamos ao redor – como?! O espelho desaparece, surge o fantasma de nós mesmos.

Quando paramos de bailar [navegar nessas ondas, quem pode saber?], rimos mais ainda e fechamos novamente o nosso círculo: agora estava quase perfeito. Não fomos abduzidos pela lua [nem havia possibilidade, pois éramos muitos – aliás, ainda somos].

Continuei andando, acompanhando o tilintar do chaveiro pendurado em minha mente e cantando ao som da banda de nossos passos, e logo pudemos abrir o círculo: estava nesta casa, finalmente.

Despedi-me do astro principal, que finalmente havia transposto o umbral celeste e nos acenava [ou será que era um daqueles sorrisos lunares rechonchudos, pintados em telas frias?] e normalizei a sobrancelha já cansada. Mantive os olhos retesados, por via das dúvidas. Temos que nos apegar a alguma coisa que demonstre certa seriedade. É o jogo.

Era só a lua mesmo. Só que cismamos de querer acreditar que não seja apenas isso; temos de criar mundos fantásticos e misteriosos: excitação! Qualquer coisa serve, contanto que seja diferente e possamos especular a respeito. Oras, para especular não é preciso muita coisa: basta inventar, concatenar harmoniosamente alguns fatos, imagens que adquiram sentidos sem-sentidos e que por isso mesmo podem ser manipuladas. Batemos muitas palmas ao espetáculo e pode até ter algumas lágrimas nos olhos, tudo isso faz parte, aliás, investimos em tudo isso, ainda é o mesmo jogo. Qualquer coisa serve… por mais que seja descartável.

[ José Roldão ]

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O dia hoje estava diferente. Acordei sentindo que outra pessoa sentava ao meu lado na cama. A cama cedeu com o peso de mais um outro corpo. Pensei que era ela. Senti alguém se esticando por cima de mim e apoiando uma das mãos na frente de minha barriga, fazendo um arco com o braço. Eu estava deitado de costas para a porta; deitado sobre meu lado esquerdo. Pensei que era ela, mas não fazia sentido, pois lembrei que tinha deixado a porta de entrada de minha casa com a tranca de segurança por dentro, pois ela não chegaria cedo. Mesmo com as chaves ela não teria conseguido entrar, sem que me chamasse. Foi então que me dei conta do absurdo. Rapidamente tentei levantar a cabeça para ver quem era, mas nem mesmo os olhos eu conseguia abrir, muito menos levantar com o peso daquela pessoa por cima, me segurando. Comecei a abanar a cabeça (sempre funciona nessas horas) e, depois de certo tempo, consegui me libertar desse fardo invisível. Levantei metade do corpo e girei os olhos pelo quarto: não havia ninguém, tudo estava como deveria estar, como eu havia deixado ao deitar-me.

Não é a primeira vez que fico preso entre-sonhos, mas sempre havia acontecido de noite. Desta vez era dia. Mudei de posição na cama e fiquei observando a porta encostada: “Coisa esquisita”. Voltei a dormir…

Mais tarde: “O dia hoje está estranho, não?”. “Por quê?”, ela perguntou. “Não sei. Algo na luminosidade, ou velocidade do dia. Não parece um dia verdadeiro, mas, sei lá, deu-me cá a idéia de que fosse um placebo do dia”. Ela não disse nada, até que, lá pela terceira ou quarta vez (já noite), respondeu-me, finalmente: “De novo? Pára de falar isso, que coisa!”. Assenti, e fui embora.

Estava com certa aflição ao seguir o percurso até minha casa. Durante dez minutos eu andei com os olhos, mais do que com os pés. Aquela luz diáfana em todo lugar; alguém pronto a soterrar-me no chão (pareceu-me um prenúncio, sentir-me soterrado por algo invisível pela manhã); um vazio espetacular nas ruas… Em dado momento achei ter escutado passos logo atrás de mim, mas não havia ninguém. Apressei-me, mas mantive a desconfiança de tudo. Tinha a certeza de que tudo era placebo. Durante alguns instantes, cheguei mesmo a pensar: “E se eu fosse o placebo?”. Desisti dessa idéia terrível, que só tornaria as coisas mais absurdas, além do suportável.

Finalmente, cheguei a minha casa. Até aqui, foi como se flutuasse na luz diáfana que me oprimia. “O asfalto parecia rolante… Eu sendo carregado… Aquela impressão de quando deixamos um balanço, mas ainda não retornamos ao ponto certo de equilíbrio”.

Cheguei até a janela e foi como se a noite fosse adensar casa à dentro, fazendo piscar os olhos. Fechei rapidamente as cortinas. Achei que fosse preciso trancar as janelas, mas não tive a ousadia para mover sequer um dedo naquela direção. Deixa estar assim, que está bem.

Acredito que o problema mais sério agora seja olhar pela janela. Desde que sentei aqui para escrever, e afastei-me dela, a impressão diminuiu, mas ainda sinto como se estivesse ali, atrás das cortinas, aguardando-me, o placebo. Na rua andei desprotegido, ao relento, sob um céu… Não me recordo do céu? Não. Tampouco adiantaria ter olhado para um placebo do céu. De certo veria algo absurdamente opaco, suspenso, pronto a desabar e mostrar alguma cena mais real, mas, quem sabe, até mesmo uma cena mais medonha. Vim correndo escrever, pois, escrevendo, acredito estar fixando algo das imagens e sentidos que tive nas letras.

Estou com medo de ir deitar-me. Não gostaria de descobrir, depois de ter fechado os olhos, que todo este dia fora mesmo um placebo e que, só depois, estivesse acordando, de fato. Todavia, nem me atrevo a mexer nas janelas. Quanto à porta da entrada, não vou deixar a tranca de segurança interna. Sempre é bom que sobrem algumas opções manipuláveis, para que tudo possa nos parecer mais real, quando assim nos convém.

[ José Roldão ]

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07duccio Jesus chama Pedro e Andre

Quatro noites escrevendo sobre dois mil anos, para combater cinco séculos. Nesta matemática dos raciocínios, onde a fé ilumina cuidadosamente a razão, vamos revelando questões e fornecendo gabaritos. Contra a invencionisse: apresento a realidade que persiste, fundada sobre a Pedra. Nesta, somando infinitamente, o resultado sempre será igual a UM; nas outras, os resultados (que podem variar ao infinito) sempre parecerão dízimas periódicas.

[ José Roldão ]

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Books

“ A vida e os sonhos são as páginas de um livro único; a leitura seguida dessas páginas é o que se chama a vida real; mas quando o tempo habitual da leitura (o dia) passa, e chega a hora do repouso, continuamos a folhear negligentemente o livro, abrindo-o ao acaso nesse ou naquele lugar, e caindo ora em uma página já lida, ora em outra que não conhecemos; mas é sempre o mesmo livro que lemos.”

[ Schopenhauer ]

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