O dia hoje estava diferente. Acordei sentindo que outra pessoa sentava ao meu lado na cama. A cama cedeu com o peso de mais um outro corpo. Pensei que era ela. Senti alguém se esticando por cima de mim e apoiando uma das mãos na frente de minha barriga, fazendo um arco com o braço. Eu estava deitado de costas para a porta; deitado sobre meu lado esquerdo. Pensei que era ela, mas não fazia sentido, pois lembrei que tinha deixado a porta de entrada de minha casa com a tranca de segurança por dentro, pois ela não chegaria cedo. Mesmo com as chaves ela não teria conseguido entrar, sem que me chamasse. Foi então que me dei conta do absurdo. Rapidamente tentei levantar a cabeça para ver quem era, mas nem mesmo os olhos eu conseguia abrir, muito menos levantar com o peso daquela pessoa por cima, me segurando. Comecei a abanar a cabeça (sempre funciona nessas horas) e, depois de certo tempo, consegui me libertar desse fardo invisível. Levantei metade do corpo e girei os olhos pelo quarto: não havia ninguém, tudo estava como deveria estar, como eu havia deixado ao deitar-me.
Não é a primeira vez que fico preso entre-sonhos, mas sempre havia acontecido de noite. Desta vez era dia. Mudei de posição na cama e fiquei observando a porta encostada: “Coisa esquisita”. Voltei a dormir…
Mais tarde: “O dia hoje está estranho, não?”. “Por quê?”, ela perguntou. “Não sei. Algo na luminosidade, ou velocidade do dia. Não parece um dia verdadeiro, mas, sei lá, deu-me cá a idéia de que fosse um placebo do dia”. Ela não disse nada, até que, lá pela terceira ou quarta vez (já noite), respondeu-me, finalmente: “De novo? Pára de falar isso, que coisa!”. Assenti, e fui embora.
Estava com certa aflição ao seguir o percurso até minha casa. Durante dez minutos eu andei com os olhos, mais do que com os pés. Aquela luz diáfana em todo lugar; alguém pronto a soterrar-me no chão (pareceu-me um prenúncio, sentir-me soterrado por algo invisível pela manhã); um vazio espetacular nas ruas… Em dado momento achei ter escutado passos logo atrás de mim, mas não havia ninguém. Apressei-me, mas mantive a desconfiança de tudo. Tinha a certeza de que tudo era placebo. Durante alguns instantes, cheguei mesmo a pensar: “E se eu fosse o placebo?”. Desisti dessa idéia terrível, que só tornaria as coisas mais absurdas, além do suportável.
Finalmente, cheguei a minha casa. Até aqui, foi como se flutuasse na luz diáfana que me oprimia. “O asfalto parecia rolante… Eu sendo carregado… Aquela impressão de quando deixamos um balanço, mas ainda não retornamos ao ponto certo de equilíbrio”.
Cheguei até a janela e foi como se a noite fosse adensar casa à dentro, fazendo piscar os olhos. Fechei rapidamente as cortinas. Achei que fosse preciso trancar as janelas, mas não tive a ousadia para mover sequer um dedo naquela direção. Deixa estar assim, que está bem.
Acredito que o problema mais sério agora seja olhar pela janela. Desde que sentei aqui para escrever, e afastei-me dela, a impressão diminuiu, mas ainda sinto como se estivesse ali, atrás das cortinas, aguardando-me, o placebo. Na rua andei desprotegido, ao relento, sob um céu… Não me recordo do céu? Não. Tampouco adiantaria ter olhado para um placebo do céu. De certo veria algo absurdamente opaco, suspenso, pronto a desabar e mostrar alguma cena mais real, mas, quem sabe, até mesmo uma cena mais medonha. Vim correndo escrever, pois, escrevendo, acredito estar fixando algo das imagens e sentidos que tive nas letras.
Estou com medo de ir deitar-me. Não gostaria de descobrir, depois de ter fechado os olhos, que todo este dia fora mesmo um placebo e que, só depois, estivesse acordando, de fato. Todavia, nem me atrevo a mexer nas janelas. Quanto à porta da entrada, não vou deixar a tranca de segurança interna. Sempre é bom que sobrem algumas opções manipuláveis, para que tudo possa nos parecer mais real, quando assim nos convém.
[ José Roldão ]
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